2Onomasiologia e semasiologia

A língua associa conceitos e operações cognitivos e comunicativos com expressões percetíveis. Existe variação nessa associação em todos os níveis, dentro da língua particular como também no nível interlingual, na gramática como no léxico. Em termos mais formais, a associação (inglês mapping) de expressão com conteúdo não é nenhuma relação biunívoca e sim uma relação n : n. Portanto, uma gramática terá uma estrutura diferente conforme que toma a estrutura da expressão como princípio de organização e leva de uma expressão ao conjunto de conceitos e funções gramaticais, ou ao contrário usa o mundo dos conceitos e operações cognitivos e comunicativos como princípio de organização e da, para cada elemento ou operação, o conjunto de expressões disponíveis na língua.

Embora o objeto da discussão seja a gramática funcional, vou ter que falar muito da gramática estrutural também. Isto é uma consequência natural do fato de que as gramáticas funcional e estrutural são complementares e se definem uma por delimitação contra a outra.


2.1As duas perspectivas no léxico

Os termos de onomasiologia e semasiologia foram introduzidos na lexicologia do século 19. Um estudo lexicológico que toma uma expressão – no caso típico, uma palavra – de uma língua como ponto de partida e analisa os seus sentidos é um estudo semasiológico. No contrário, um estudo que toma um conceito como ponto de partida e pergunta como esse se exprime na língua em questão é um estudo onomasiológico. O diagrama D1 apresenta as duas direções da associação de expressões com conceitos pelo exemplo do verbo inglês entertain.

  1. . Onomasiologia e semasiologia no léxico



Partindo-se dos conceitos, ou seja, na perspectiva onomasiológica, D1 apresenta as possibilidades de exprimir a situação de ‘X diverte Y’. Para tanto, o inglês facilita, entre outros, os três verbos divert, entertain e amuse.

Partindo-se das expressões, ou seja, na perspectiva semasiológica, o diagrama responde à questão do quê significa a expressão verbal X entertains Y. São, entre outros os três sentidos apresentados e ilustrados pelos exemplos E1:

  1. . a. Linda has to entertain her destitute brother.

b. Linda entertained the whole party.

c. Linda entertains strange hypotheses on Portuguese grammar.

Assim, o léxico semasiológico dá conta da polissemia de um lexema, mostrando como este, dependendo do contexto, tem sentidos diferentes. Por outra parte, o léxico onomasiológico dá conta da sinonimia entre todas as expressões que correspondem a um conceito dado, mostrando como o conceito toma formas diferentes dependendo de condições contextuais.


2.2As duas perspectivas na gramática

D2 apresenta as duas direções de associação de expressão e conteúdo pelo exemplo do genitivo inglês.

  1. . Onomasiologia e semasiologia na gramática



Na perspectiva onomasiológica, estamos considerando uma relação possessiva entre um objeto possuído X e um possuidor Y, e estamos buscando as estratégias da gramática inglesa para codificar tal relação. São, entre outras, as quatro construções esquematizadas na línea de base de D2, ilustradas pelos exemplos E2:

  1. . a. The pen belongs to the teacher.

b. the pen of the teacher

c. the teacher’s pen

d. the teacher has a pen

Na perspectiva semasiológica, a questão são os sentidos ou as funções da construção inglêsa [ Nom [ of NP ] ]. Essas incluem, entre outras, as quatro relações conceptuais representadas na cima do quadro e ilustradas, por ordem, pelos exemplos E3:

  1. . a. the top of the pen

b. the pen of the teacher

c. the process of grammaticalization

d. the teacher’s publications

O exemplo complica-se um pouco pelo fato de que o inglês possui dois genitivos.


2.3O papel das duas perspectivas na lingüística

Como se vê, faz uma sensível diferença metodológica se se toma um conceito ou uma função como ponto de partida e investiga os recursos estruturais que os codificam na língua, ou se, pelo contrário, se parte de uma expressão e da sua estrutura e investiga os seus significados ou funções. A primeira perspectiva é a onomasiológica, a segunda a semasiológica. Estos termos foram inventados no século 19 e são tradicionais. Vou voltar à questão dos termos mais adiante.

As duas perspectivas podem ser referidas às duas actividades lingüísticas, a produção e o entendimento da fala. Desde um ponto de vista sistemático, o locutor segue o procedimento onomasiológico, já que começa com o que quer dizer, ou seja, os conceitos e as operações cognitivos e comunicativos, e busca os méios de codificá-los na língua. O ouvinte, pelo contrário, segue o caminho semasiológico, porque o que lhe é dado é um texto, portanto expressões, e a tarefa dele é de procurar-lhes os sentidos.

Na base da onomasiologia está uma sistemática semântica, ou seja um sistema de conceitos, relações conceptuais e operações cognitivas e comunicativas. A estrutra genérica dessa sistemática é universal e parcialmente até extralingüistica, ainda que em níveis mais finos de granularidade se ramifique nos significados e categorias gramaticais próprias de cada língua. Do mesmo modo, na base da semasiologia está uma sistemática estrutural, ou seja um sistema de unidades, relações e processos do méio espressivo; e essa também é parcialmente universal e até extralingüística.

A distinção entre um dicionário semasiológico e um onomasiológico está firmemente estabelecida na lexicografia. Todos temos dois volumes do nosso dicionario inglês. Quando escrevemos, tomamos o ponto de vista onomasiológico e nos servimos do volume português-inglês, enquanto ao ler um texto, tomamos o ponto de vista semasiológico e utilizamos o volume inglês-português. O volume português-inglês é um dicionário onomasiológico do inglês, porque os lemas portugueses não nos interessam como unidades do sistema português, mas os utilizamos somente como representantes dos conceitos que queremos exprimir em inglês. O volume inglês-português é um dicionario semasiológico do inglês, porque o que nos interessa nas definições prestadas não são as expressões e sim exclusivamente o significado que representam. Em todo o caso, para um léxico de uma língua estrangeira, a organização em dois volumes nos parece totalmente natural e até necessária.

Como é bem sabido, existem também dicionários monolingües onomasiológicos e semasiológicos. Roget’s Thesaurus (1852) é um dos primeiros dicionários onomasiológicos já feitos. No Brasil, o dicionário analógico de Azevedo (1974) é bastante difundido. Nesse tipo de dicionário, os verbetes estão ordenados em campos semânticos. Por outro lado, um dicionário semasiológico deveria ser ordenado conforme uma sistemática estrutural, quer dizer, segundo critérios morfológicos e fonológicos. Enquanto existem tais dicionários, não são comuns. A maioria dos consulentes acha mais útil um dicionário semasiológico cujas entradas estão ordenadas alfabeticamente.


3Gramática onomasiológica e semasiológica

Com a exceção de lingüistas que elaboram teorias abstratas, aqueles lingüistas que descrevem línguas coincidem em que o sistema significativo de uma língua tem duas seções, o léxico e a gramática. Como se vê por uma comparação dos diagramas D1 e D2, a gramática não se distingue do léxico por que as suas unidades não tivessem significado e sim por que têm um significado mais abstrato. Portanto, a alternativa de uma abordagem onomasiológica e semasiológica faz sentido na gramática exatamente como no léxico. Contudo, aqui encontramos uma diferença enorme entre as tradições lexicográfica e gramaticográfica: Enquanto ambos os dicionarios onomasiológico e semasiológico estão bem estabelecidas tanto na metodologia da disciplina como no mercado dos usuários, a distinção correspondente na gramaticografia é ou bem desconhecida ou bem não considerada relevante. Aqui vale a pena uma pequena retrospectiva.

As primeiras gramáticas do mundo ocidental, as gramáticas gregas de Dionísio da Trácia e Apolónio Díscolo, e as gramáticas latinas de Élio Donato e Prisciano, seguem essencialmente um modelo semasiológico. Embora os conceitos gramaticais com que operam sejam compostos de critérios semânticos e estruturais, a organização global dessas gramáticas é puramente estrutural. Essa estruturação das gramáticas das línguas clássicas entende-se perfeitamente como consequência da abordagem que os consulentes tomavam a essas gramáticas: Essas obras estavam destinadas a pessoas que falavam uma variedade da koiné ou do proto-românico e cuja tarefa era a de entender os textos clássicos, médio milénio mais antigos. Só uma ínfima minoria tinha o propósito de escrever em grego ou latim clássico; e ninguém tinha o propósito de falar essas línguas.

A perspectiva mudou no médio evo. Agora todos os vernaćulos diferiam tanto das línguas clássicas que já ninguém se enganava acreditando que a sua língua materna fosse o latim clássico. Por outro lado, havia, sobretudo na administração e jurisdição, nos monastérios e nas universidades, um crescente número de pessoas que deviam escrever e até falar em latim, já que essa era, no mundo ocidental, a única língua que se escrevia e que servia na comunicação intercultural. Portanto não é nenhuma coincidência o fato de que os modistas, aqueles escolásticos que se ocupavam da teoria gramatical, criavam uma teoria onomasiológica da gramática latina. É interessante observar que Tomás de Erfurt, em certo sentido o aperfeiçoador dessa corrente lingüístico, critica por repetidas vezes os gramáticos antigos pelos seus conceitos estruturais, insistindo que conceitos gramaticais devem ter uma base puramente semântica.

Aqui se acaba a torrente de gramáticas que são consistentes quanto à alternativa entre abordagem semasiológica e onomasiológica. As gramáticas das línguas européias escritas desde o início da modernidade, bem como as gramaticais das línguas faladas nas colonias, compostas tipicamente por missionários, mezclam os dois modelos. A típica gramática tradicional está subdividida em morfologia e sintaxe. A morfologia trata dos paradigmas de flexão, a sintaxe das construções de dependencia e do significado das formas morfológicas. Até aqui, tudo conforme com o modelo semasiológico. Depois, e na medida em que a gramática é completa, de repente muda a perspectiva, e encontramos capítulos sobre interrogação, negação, adverbios locais e temporais e orações causais e concessivas, todos esses assuntos claramente semânticos. Significa que essas gramáticas confundem de maneira incontrolada as abordagens semasiológica e onomasiológica. Esse tipo de gramática se encontra até hoje em dia. O que é particularmente desconcertante é o fato de que, naquela corrente gramaticográfica que se dedica às línguas minoritárias e que se chama tipológica, fica bem aceite a afirmação tipicamente feita na introdução do livro dizendo que já que não parece útil aderir a um modelo formal de descrição, o autor oferece uma gramática de índole tradicional – e com isso quer dizer, uma gramática que não obedece a nenhum sistema consistente.

O primeiro que reparou nesse estado de coisas foi o lingüista alemão Georg von der Gabelentz. Na sua introdução à lingüística (1891), postulou uma gramática bipartida. O primeiro sistema, chamado gramática analítica pelo autor, deve tomar o ponto de vista do ouvinte ou leitor e explicar as construções, enquanto o outro sistema, chamado gramática sintética, deve tomar o ponto de vista do falante ou escritor e descrever os recursos expressivos que a língua lhe coloca à disposição. Na sua gramática chinesa, o autor levou essa metodologia a cabo, comprovando com isso que uma gramática bipartida conforme esse esquema é viável e útil. A ideia foi resumida pelo lingüista danês Otto Jespersen, mas depois não resultou frutífera.

Como é bem sabido, o estruturalismo americano declarou a necessidade de uma gramática puramente estrutural. Muitas dessas gramáticas, com exemplar clareza as gramáticas tagmêmicas publicadas na década dos 1960, não sòmente observam uma sistemática puramente estrutural, mas também se negam – perfeitamente obedientes à doctrina bloomfieldiana – a dar informação semântica alguma. Com isto forçam duas barras ao mesmo tempo: a primeira, porque uma gramática exclusivamente semasiológica não serve ao falante ou escritor e é, portanto, incompleta; e a segunda, porque uma gramática semasiológica não deve ser assemântica de modo nenhum. Muito pelo contrário, a semasiologia no entendimento dos finais do século 19 e da primeira parte do século 20 é quase o mesmo que a semântica lingüística, vale dizer, uma semântica que, em vez de pressupôr uma lógica de conceitos que busca na língua, parte das expressões e as explica.

A ideia de que uma gramática deve ser puramente estrutural foi, como sabemos, levada ao extremo pelo modelo da gramática gerativa, o qual, porém, quase não produziu descrição lingüística completa de língua alguma. A partir dos anos 1970, começa uma corrente de lingüística funcional que produz gramáticas de línguas minoritárias. Enquanto a maioria dessas gramáticas pertence ao gênero já mencionado de gramatica “tradicional”, podem-se citar ao menos algumas gramáticas onomasiológicas. O Summer Institute of Linguistics iniciou, nos anos 1970, uma série de gramáticas que se liberaram do modelo tagmêmico e que se denominaram ‘discourse grammar’ (testemunho a homenagem Abraham et al. 1995), o nome utilizado então em vez de ‘functional grammar’.

Resumindo, então: Tanto uma gramática puramente estrutural como uma gramática puramente funcional são parciais e devem complementar-se mutuamente. Uma gramática em duas partes é necessária tanto por razões teóricas como por razões práticas. As razões teóricas dizem respeito ao sistema que subjaz a organização da gramática em capítulos e seções. Uma gramática deve tratar juntamente o que é parecido no língua. Porém, temos que optar por tratar juntamente ou bem o que é parecido semanticamente ou bem o que é parecido formalmente. Isso nos força a descrever a língua conforme dois sistemas independentes. As razões práticas concernem o usuário. Uma gramática funcional é perfeitamente inútil para o ouvinte e leitor, bem como uma gramática estrutural é inútil para o falante e leitor. Esta última experiência têm feita todos os tipólogos que têm tentado explorar gramaticas estruturais na sua pesquisa comparativa: visto que uma questão de tipologia gramatical opera forçosamente com um denominador comum de natureza funcional, só serve uma gramática que oferece esse ponto de vista. Boa parte das gramáticas publicadas na época do estruturalismo se averam, assim, inúteis até para os profissionais, para não mencionar os leigos.

O termos ‘gramática onomasiológica’ e ‘semasiológica’ são altamente enrolados, equívocos e pouco respalhados na disciplina. Já utilizei os termos alternativos, ‘gramática funcional’ e ‘estrutural’, muito melhor estabelecidos na lingüística contemporânea. Porém, temos que proteger esses termos contra dois mal-entendidos. Primeiro, as gramáticas funcional e estrutural não se distinguem por tratarem uma das funções e a outra das estruturas da língua. Pelo contrário, ambas tratam de ambos os aspetos. A diferênça é que a gramática estrutural desenvolve uma sistemática estrutural e fornece as funções das construções, enquanto a gramática funcional desenvolve uma sistemática funcional e converte os conceitos e operações cognitivos e comunicativos em expressões com as suas estruturas formais. Por segundo, temos tido, na lingüística do médio século passado, uma oposição totalmente esteril entre funcionalismo e formalismo. Um lingüísta que pretende descrever a gramática prestando atenção exclusiva às estruturas sem preocupar-se jamais das funções preenchidas por essas é simplesmente um mau lingüista, e um lingüista que pretende pesquisar as funções da língua sem basear as suas teorias funcionais numa análise das estruturas é igualmente um mau lingüista. Portanto, se esta contribuição leva o título de ‘gramática funcional’, nenhuma prioridade dessa abordagem está implicada. Qualquer gramática completa é tanto estrutural como funcional.


4A gramática funcional

Enquanto as gramáticas que são ou se querem estruturais não fazem falta, há pouquíssimas gramáticas funcionais. Porém, algumas variedades da lingüística funcional têm produzido modelos de gramática funcional que se podem aplicar na descrição. Faço referência, em particular, aos domínios funcionais preconizados, entre outros, por Talmy Givón (1993) e Hansjakob Seiler (2000). A ideia que subjaz a esse conceito é a seguinte: O total dos significados gramaticais transportados pelos formativos e as construções gramaticais das línguas do mundo se deixa organizar num conjunto não demasiado grande de domínios que têm certa coerênça funcional. Esses são subordinados às duas funções mais gerais da linguagem humana, a cognição e comunicação. O conjunto enumerado em D3 parece satisfazer às línguas conhecidas até hoje.

  1. . Domínios funcionais da linguagem

domínio funcional

subdomínios importantes

aprehensão e nominação

sistemas de categorização, tipos de conceitos, individuação de objetos

modificação de conceito

atribuição, aposição

referência

determinação (incl. deixis), fora

possessão

possessão na referência, predicação possessiva, possessão e participação

construção do espaço

pontos de referência, relações locais, regiões espaciais, propriedades espaciais y figurais de objetos

quantificação

quantificação na referência / na predicação

predicação

apresentação, existência/estado, caracterização

participação

controle e afeto, papeis de participante centrais y periféricos

orientação temporal

tipos de situação, aspectualidade, caracteres verbais e modos de ação; tempo absoluto, relação temporal

contraste, comparação, graduação

negação, comparação, graduação, intensificação

nexo

reprodução de fala, orações de conteúdo, relações interproposicionais

estrutura informacional

dinamismo comunicativo, estrutura do discurso

ilocução y modalidade

afirmação, pergunta, exclamação, pedido e comando, exhortação, obrigação, volição, possibilidade, evidencialidade, modalização


Ao julgar a utilidade desse quadro, é necessário levar na mente que a associação de funções e estruturas nas línguas é múltipla. Portanto, uma estratégia estrutural de uma língua não se deixa necessariamente subsumir exaustivamente sob um dos domínios. Muito pelo contrário, o caso normal será que uma estratégia serve em mais de um domínio, preenchendo várias funções simultaneamente ou alternativamente. Isto não é nenhum fraco do modelo, mas pelo contrário está previsto nele.

Eis um exemplo que ilustra a questão: Uma análise semasiológica do português vai diagnosticar a construção [ [ X ]Nom de [ Y ]SN ], como em casa do João, e vai reconhecê-la também em expressões como mãe do João, braço da estátua, ocupação do Iraque e muitas outras. Ora, a relação semântica que liga X e Y difere nesses exemplos: em casa do João a relação é de posse; em mãe do João é a relação de parentesco, em braço da estátua é a relação da parte ao inteiro, e em ocupação do Iraque é a relação do paciente à ação, chamada tradicionalmente genitivo objetivo. O domínio de possessão exposto acima abrange algumas dessas construções, mas não todas. Exclui a construção de genitivo objetivo, porque a relação do paciente à ação não é nenhuma relação possessiva. Essa construção leva uma relação paradigmática à construção transitiva do tipo (alguém) ocupa o Iraque, a qual não tem contrapartida nos outros exemplos. Desde um ponto de vista onomasiológico, esta última construção pertence ao domínio de participação. Portanto, as fronteiras entre os domínios funcionais – se realmente se trata de fronteiras – podem separar construções estruturalmente semelhantes.

Por outro lado, o domínio de possessão abrange também as predicações possessivas, como em o João tem uma casa, a casa é do João. Essas não são construções nominais como as anteriores e sim são verbais. Desde o ponto de vista estrutural, pertencem num outro capítulo da gramática. Desde um ponto de vista funcional, porém, cabe observar que a relação de posse que existe entre o João e a casa é exatamente a mesma nas expressões casa do João, o João tem uma casa e a casa é do João. Visto que o que constitui o domínio funcional da possessão é a natureza da relação entre duas entidades, ele abrange todas essas construções. E mais uma vez, é verdade que existem relações paradigmáticas entre elas. Por exemplo, a casa do João transforma-se em a casa que o João tem. Assim a gramática onomasiológica passa pela mesma fieira construções que podem ter pouco que ver uma com a outra sob um ponto de vista estrutural, mas o faz com razão e baixo controle metodológico.

Vários lingüistas que se localizam na tradição estruturalista acham difícil aceitar uma descrição onomasiológica. E essa é, sem dúvida, a razão porque há muito mais gramáticas semasiológicas do que onomasiológicas. Essa desconfiança se explica provavelmente pelo fato de os critérios de uma análise onomasiológica serem menos óbvios. Porém, os critérios na análise gramatical são, em geral, os mesmos que na análise lexical: Justamente como o léxico onomasiológico traz todos os lexemas semanticamente relacionados com um conceito base, e sobretudo todos os sinônimos, assim a gramática onomasiológica traz todas as construções semanticamente relacionadas que levam alguma relação paradigmática entre si. Assim, as transformações como modo de formalizar as relações paradigmáticas no nivel sintático adquirem um papel metodológico importante na gramática funcional, afastando assim o perigo de arbitrariedade.

O quadro D3 não pode ser justificado nos seus detalhes e aqui serve somente para mostrar o contexto no qual se enquadra o domínio a ser analisado um pouco mais a fundo, o domínio do nexo.


5Gramática do período composto

5.1Pressupostos

O campo gramatical a ser brevemente analizado delimita-se pelos dois procedimentos metodológicos. Desde o ponto de vista estrutural, o objeto é a frase complexa, enquanto desde o ponto de vista funcional, é a proposição complexa. Uma frase complexa é uma que contém mais de uma forma verbal. Esta definição inclui, naturalmente, as construções que contêm mais de uma oração, mas exclui as formas verbais perifrásticas, já que cada uma delas é uma só forma verbal. Uma proposição complexa é uma que abrange mais de uma proposição. Vista a associação múltipla entre estruturas e funções, esses dois conceitos não cubrem, naturalmente, o mesmo campo de fenômenos. Por exemplo, uma frase clivada como E4 é complexa sob o ponto de vista estrutural, mas não cae no domínio funcional de nexo, já que não há nenhuma relação interproposicional entre as duas orações.

  1. . É assim que se faz.

E por outro lado, a frase de E5 contém o sintagma nominal fraco apoio; mas semânticamente, aqueles grupos não lamentam um apoio e sim lamentam o fato de que o apoio seja fraco.

  1. . Grupos carnavalescos lamentam fraco apoio prestado pelo empresariado

(http://www.portalangop.co.ao/motix/pt_pt/noticias/lazer-e-cultura/2011/2/9 …)

A esse sintagma nominal subjaz, pois, uma proposição. Disso segue-se que nem tudo o que apresenta complexidade sintática pertence ao domínio de nexo, e igualmente nem tudo o que exprime uma proposição complexa é uma frase complexa.


5.2Frase complexa

Visto o propósito desta contribuição, não vamos aprofundar a abordagem semasiológica e nos limitaremos à estrutura geral da gramática da frase complexa. Os parâmetros que articulam esse capítulo da gramática são conceitos puramente estruturais. Os principais são os apresentados em D4:

  1. . Gramática estrutural da frase complexa

1

Relação entre orações

Jerarquia

Coordenação

Subordinação

Cosubordinação



Ordem sequencial


2

Redução e expansão de orações

Redução da oração subordinada

Subordinada finita

Subordinada infinita

Redução da oração principal


Redução na cosubordinação


3

Fusão de orações

Redução de conjunção e formação de lacuna


Anáfora zero, formação de posição de argumento, controle


Entrelaçamento de orações

Alçamento

Prolepse

4

Explicidade da ligação

Assíndese (juxtaposição)


Síndese (conexão)

Distribuição de conectivos

Morfologia de conectivos


Esses parâmetros produzem uma classificação cruzada de forma a permitir uma descrição fina das frases complexas.


5.3A construção de movimento com propósito

A construção que nos vai servir de exemplo para ilustrar a gramática funcional é a construção de movimento com propósito (ingl. motion cum purpose), ilustrada em E6.

  1. . A Linda veio trabalhar conosco / na cidade.

Essa construção tem a estrutura mostrada em D5:

  1. . Construção de movimento com propósito

[ [ A ]V.intr ( [ B ]SAdv ) [ [ C ]V.inf ( D ) ]SV.inf ]SV



Explicando: A construção é um sintagma verbal (SV) complexo que contém o verbo principal (finito ou infinito) (A) e um SV dependente infinito (SV.inf). A é um verbo de movimento orientado. No caso mais simples, é um dos verbos ir e vir, como em E6 e E7:

  1. . Após ser liberado fui para casa repousar

(www.recantodasletras.com.br/homenagens/2911611)

Outros verbos de movimento orientado encontram-se raramente na posição de A. Assim, o verb sair aparece em frases como E8.

  1. . quando chego da escola meio dia, ela já saiu trabalhar

(feelingsjust.tumblr.com/.../vou-contar-as-voces-uma-coisa-que-vi-hoje-quando-eu)

Mas a colocação saiu trabalhar encontra-se ao mais 113 vezes em Google (19/05/2011), enquanto a colocação saiu para trabalhar encontra-se 120.000 vezes. Do mesmo modo, Google produz 24 provas de subiu cantar, como em E9, mas 2.310 exemplos de subiu para cantar.

  1. . nosso amigo Anderson Nogueira estava presente e subiu cantar 3 musicas com o loirinho

(www.youtube.com/user/danimosena)

Outros verbos de movimento orientado, como entrar e baixar, parecem não usar-se nessa construção.

B em D5 é um local que representa a meta do movimento. Deve ser simples, como em E7 e E10:

  1. O capelão que veio a casa dar-lhe a extrema unção … conhecia-o ...

(ultramar.terraweb.biz/.../Imagens_CTIG_HumbertoDuarte_AHomenagem.htm)

C é um verbo transitivo ou intransitivo, que pode ser acompanhado dos seus dependentes E.

Conforme dito, A é um verbo intransitivo. O uso de verbos de transporte orientado, como trazer e levar, é muito mais restringido. Assim Google encontra 68 exemplos de levou trabalhar, como em E11, mas 36.700 de levou a trabalhar e 11.900 de levou para trabalhar.

  1. Eu tinha 13 anos e meu padrasto me levou trabalhar como boy no Cartório de Notas

(http://www.atibaianews.com.br/index2.php)

As mesmas proporções valem para trouxe trabalhar como oposto a trouxe para trabalhar. Em fim, cabe mencionar que a construção de movimento com propósito, com o verbo de movimento orientado mais básico, está no origem da gramaticalização do futuro perifrástico com ir.


5.4Nexo

Passando agora à análise funcional dessa construção, nos encontramos no domínio funcional de nexo. Os parâmetros que estruturam este capítulo da gramática são conceitos puramente funcionais, mais precisamente, cognitivos. Como a abordagem onomasiológica é uma passagem a méios de expressão, e essa não é um mapping direto e sim uma transição gradual, no seu percurso vão aparecendo categorias gramaticais específicas com a sua face estrutural. Começamos com a visão geral do domínio funcional de nexo, que aparece em D6.

  1. . Domínio funcional de nexo

  1. Relações interproposicionais

    1. Reprodução de discurso

      1. Discurso direto

      2. Discurso indireto

    2. Relações intrínsecas

      1. Declarativa indireta: argumento de predicado fasal, modal, de comunicação, percepção, cognição, emoção, volição, manipulação

      2. Interrogativa indireta

      3. Jussiva indireta

    3. Relações extrínsecas

      1. Relação lógica

        1. Coordenação lógica: conjunção, disjunção, explicação

        2. Condição

      2. Relação concreta: local, temporal, modal, causal, final, concessiva, contrastiva, comparativa

  2. Interdependência de proposições

    1. Interdependência de referência temporal e aspectualidade

    2. Interdependência de referência de participantes

    3. Estatuto informacional das proposições



Aqui não vamos poder explicar todos esses conceitos, e em vez disso seguiremos a jerarquia conceptual de cima para baixo para chegar à construção de movimento com propósito. Uma dependência semântica entre duas proposições pode ser constituída ou bem por uma relação interproposicional entre elas ou bem pelo fato de que certas propriedades de uma delas dependem de propriedades da outra. Isto nos da a divisão principal do domínio de nexo. A interdependência entre proposições gerada por compartilharem certos componentes não nos vai ocupar mais aqui. As relações interproposicionais são de três tipos. O primeiro consiste da relação metalingüística levada pela oração principal ao discurso citado. No resto, cabe distinguir entre relações interproposicionais intrínsecas e extrínsecas. O critério da distinção reside na questão de se a relação interproposicional é inerente a uma das proposições ou fica fora de ambas. No primeiro caso, uma das proposições é tipicamente um argumento do predicado da outra. Esse subdomínio trata, pois, de predicados de atitudes proposicionais. A relação de reprodução de discurso poderia parcialmente subsumir-se a esse conceito. No segundo caso, a relação entre as duas proposições é estabelecida por um relator que se acrescenta a uma ou ambas delas. Este relator pode ou não ser codificado em forma de conectivo.

As relações extrínsecas, por sua vez, são de dois tipos, lógicas e concretas. As relações logicas não têm nenhum conteúdo semântico e antes dizem respeito ao estatuto das proposições como asseridas, pressupostas ou hipotéticas. As relações concretas são aquelas que envolvem os conceitos de espaço, tempo, causa, contraste etc. São estabelecidas por relatores interproposicionais. Um relator interproposicional é um funtor bivalente assimétrico que toma uma das proposições como argumento, formando com esta um sintagma que modifica a outra proposição. Por exemplo, em ‘p porque q’, a conjunção ‘porque’ se combina com q, formando assim uma proposição causal que modifica p. Nisso, um relator proposicional funciona como um relator de caso.

Desse modo, um relator proposicional converte a proposição com que se combina num ponto de referência para a proposição modificada. A proposição de referência é subordinada, enquanto a outra é a proposição principal. Muitos relatores têm contrapartidas conversas de maneira que o falante pode escolher a qual das proposições assignar estatuto subordinado. Por exemplo, em vez de ‘p depois de que q’ podemos ter ‘q antes de que p’; e em vez de ‘p porque q’ podemos ter ‘q de modo que p’. A escolha depende de considerações de estrutura informacional, coesão textual e relevância/énfase.

A assimetria entre as duas proposições numa relação interproposicional concreta pode refletir-se na estrutura sob forma de uma construção em que a proposição de referência é codificada por uma oração subordinada enquanto a proposição principal é codificada como oração principal. Para maior claridade, os conceitos de relações interproposicionais específicas definidas abaixo serão ilustradas por tais frases complexas assimétricas. Porém, cabe levar na mente que toda relação interproposicional pode também ser codificada por orações coordenadas. Os relatores interproposicionais coordinativos diferem semânticamente dos subordinativos por terem a sua posição de argumento ocupada por uma referência déictica ou anafórica à oração subordinada. Por exemplo, em vez de p porque q podemos ter q, portanto p. A conjunção coordinativa portanto contém o demonstrativo tanto, que ocupa a posição rectiva do relator interproposicional por e faz referência a q.

Numa relação causal da forma ‘p causa q’, p é a causa ou a razão de q, e q a consequência ou o resultado de p. Em E12, a subordinada especifica a razão da principal.

  1. A Linda afogou-se porque não veia nenhum futuro para a lingüística.

O motivo de uma ação pode ser um propósito que o agente persegue, como aparece em E13.

  1. A Linda afogou-se porque queria que a lagoa trasbordasse.

Neste subtipo de período causal, a oração principal é agentiva, quer dizer, tem a estrutura semântica ‘A faz P’, enquanto a subordinada tem a estrutura semântica ‘A quer q’. Ora a configuração ‘[A faz P] é causado por [A quer q]’ subjaz à relação interproposicional chamada final. Algumas línguas têm conjunções subordinativas cujo significado compreende justamente o componente sublinhado dessa configuração, como é o caso do português para. Isto aparece comparando-se E13 com E14.

  1. A Linda afogou-se para que a lagoa trasbordasse.

A relação paradigmática entre E13 com E14 pode descrever-se por uma transformação. Isso mostra que a relação final está baseada na relação causal combinada com o conceito de volição. Ora, dada uma relação ‘p causa q’, aquele que controla p também controla, mediatamente, q. É, portanto, uma constelação natural que p e q tenham o mesmo agente, como é o caso em E15.

  1. A Linda afogou-se porque queria chatear seu marido.

A relação final com sujeito idêntico é tão básica que é gramaticalizada em muitas línguas. A construção dedicada a essa constelação aproveita o fato de haver controle de sujeito através de orações. Em tal constelação, o predicado da subordinada pode ser um infinitivo, como em E16.

  1. A Linda afogou-se para chatear seu marido.

Mais uma vez, a relação paradigmática entre E15 e E16 é regular e, portanto, suscetível de uma descrição transformacional. Ora, numa situação em que A faz P para fazer Q, a ação P mais básica é um movimento de A. E vice-versa, vista a essencial inércia humana, se alguém se move, o faz com um propósito. Portanto, uma configuração frequente da relação interproposicional final é o movimento com propósito, como aparece em E17:

  1. A estrela subiu ao palco para cantar.

A construção de E17 é a mesma de E16. Em outras palavras, ainda que E17 exprima um movimento com propósito, não apresenta nenhuma construção particular que difira do infinitivo final visto em E16. Contudo, podemos restringir mais ainda as condições: o movimento do agente é um movimento genérico, quer dizer, não implica mais que a oposição básica de déixis espacial, como em E6 e E7:

E6. A Linda veio trabalhar conosco / na cidade.

E7. Após ser liberado fui para casa repousar

Especificando assim cada vez mais as condições semânticas que valem para a relação final entre p e q, chegamos finalmente à construção de movimento com propósito. Esta representa, portanto, uma combinação de proposições ‘q causa p’ tal que p é ‘A se desloca a uma meta’ e q é ‘A quer participar na situação p’.


6Conclusão

Quem compara os dois quadros D4 e D6, da gramática estrutural da frase complexa e do domínio funcional de nexo, se da conta imediata de que os conceitos desta última abordagem são bem familiares da nossa gramática escolar e até das descrições lingüísticas de línguas minoritárias, enquanto os conceitos da gramática estrutural faltam quase por completo nesse campo da gramática. Assim o exemplo do período composto mostra com particular claridade quão inconsistentes são as nossas gramáticas tradicionais: embora sejam preponderantemente semasiológicas na sintaxe nominal e verbal, de improviso mudam de perspectiva na gramática sentencial, tomando uma abordagem onomasiológica.

Assim concluímos que uma gramática completa tem duas partes complementares, uma que parte das funções cognitivas e comunicativas e mostra como essas se preenchem na língua em questão por construções gramaticais, e outra que parte das expressões com a sua estrutura e mostra que significados têm e que funções preenchem.


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